A ilusão da percepção: o véu da vaidade sobre a realidade

Amigos e amigas, irmãos e irmãs! Jesus possa nos inspirar em mais esta conversação que não tem outro objetivo senão o compartilhar de nossos corações.

No transcurso silencioso dos dias que se sucedem, entre os gestos mais simples e os acontecimentos aparentemente banais de nosso roteiro encarnatório, uma verdade profunda se revela inexorável àqueles que se dispõem a estudá-la: raramente nos deparamos com a realidade tal como ela verdadeiramente é. Em nossa jornada cotidiana, somos como viajantes que, ao contemplar uma paisagem através de vidros embaçados, acreditam ver com clareza o que se apresenta diante de nossos olhos, quando, na verdade, observamos apenas as distorções criadas pelas manchas e imperfeições do próprio cristal sujo.

Em nossa trajetória, mesmo se considerarmos somente os poucos anos da presente encarnação, carregamos inúmeras marcas das diversas experiências vividas; resquícios das paixões cultivadas, tristezas por não compreendermos os fatos que nos sucederam; feridas a manarem sangue por não sabermos perdoar; dogmas e tradições herdados de nossos entes que constituem velho acervo a pesar psiquicamente em forma de sofrimento; sobretudo, a nossa tendência pelo orgulho, pela vaidade e pelo egoísmo coloca-nos na condição de interpretar o mundo não pela lente cristalina da verdade equilibrante, mas por meio do prisma deformante de nossas próprias conveniências, que funcionam como véus que se interpõem entre nossa consciência e a realidade dos fatos.

O que ordinariamente denominamos realidade em nosso cotidiano é, na maior parte das vezes, apenas o reflexo de nossas expectativas, de nossos medos, de nossos desejos não confessados ou ainda o retrato de mentalidade. Criamos, inconscientemente, um universo particular no qual os acontecimentos ganham significados que correspondem não ao que verdadeiramente são, mas ao que precisamos que sejam para manter intacta a imagem que construímos de nós mesmos e do mundo que nos cerca.

A vaidade, entidade sagaz que se manifesta em mil disfarces, constitui o principal obstáculo à percepção clara da realidade. Ela atua como um filtro imperceptível que seleciona, entre os milhares de aspectos que compõem qualquer situação, apenas aqueles que confirmam nossas preconcepções ou que alimentam nossa autoimagem. A vaidade nos torna seletivos diante da verdade: aceitamos com facilidade aquilo que nos agrada; rejeitamos ou distorcemos o que nos incomoda ou desafia.

Assim, não percebemos a realidade em sua totalidade porque admitimos apenas a porção dela que se harmoniza com nossos interesses, com nossas conveniências íntimas, com nossa autoimagem e com a narrativa que elaboramos sobre quem somos. É como se possuíssemos um mecanismo interno de edição que recorta, cola e reinterpreta os fatos de acordo com critérios puramente pessoais, criando uma versão customizada da existência que, embora nos pareça absolutamente verdadeira, representa apenas uma ficção bem elaborada.

Esta tendência se manifesta nas situações mais corriqueiras: quando interpretamos um gesto como ofensa pessoal, quando atribuímos intenções maliciosas ao comportamento alheio, quando transformamos uma crítica construtiva em ataque à nossa dignidade, ou quando convertemos uma diferença de opinião em questão de honra. Em todos esses casos, reagimos não ao que realmente aconteceu, mas à versão dos fatos que nossa vaidade construiu para preservar a imagem idealizada que temos de nós mesmos.

A percepção da realidade, em sua essência, exige isenção de si mesmo. Esta isenção não significa a negação de nossa individualidade, mas a capacidade de enxergar e renunciar nossos interesses pessoais, nossos preconceitos e nossa necessidade de ter sempre razão, para permitir que os fatos se apresentem em sua nudez, sem os ornamentos ou as deformações que nossa conveniência tenta lhes impor.

Ser isento de si mesmo é aceitar que nossa percepção pode estar equivocada; que nossa versão dos acontecimentos pode não ser a única possível; que nossa visão pode estar contaminada por elementos que não guardam simetria com a verdade. É reconhecer que, muitas vezes, aquilo que mais nos incomoda é, precisamente, o reflexo de aspectos nossos que preferimos não reconhecer.

O exercício da isenção demanda humildade genuína, aquela que brota não da imposição alheia; não da força exercida por uma “autoridade” filosófica, religiosa ou social, mas da compreensão profunda de nossas próprias limitações. Eis poque isenção de si mesmo exige autorreconhecimento da própria insignificância. Quando compreendemos que nossa percepção é naturalmente limitada e que nossa tendência é interpretar o mundo por meio de lentes da nossa história pessoal, desenvolvemos a capacidade de questionar nossas próprias certezas e de buscar perspectivas mais amplas e menos contaminadas por nossos condicionamentos e interesses.

Quando renunciarmos ao nosso acervo de caprichos e conveniências pessoais, descobriremos – mesmo no trato das coisas diárias – que os outros não são exatamente como os percebíamos; que as situações possuem facetas que nossa percepção limitada não pode sequer sondar; que a vida é muito além do que nossa vaidade nos permite perceber. Descobriremos, sobretudo, que somos bem menores do que imaginávamos ser e que a realidade das coisas é infinitamente mais rica e complexa do que supúnhamos. É então que, deparados com nossa insignificância e impotência diante da infinitude universal, quedamo-nos sem possibilidades.

Verificamos contristados: quantos movimentos vãos em asseverar o que o outro deveria fazer! Quantas tolices saídas de nossos corações em críticas porque alguém procedeu de maneira diversa do que entendemos como certo! Quantas deturpações em nós são vendidas como verdades universais! Sentados no trono de nossos esfarrapados conceitos, desferimos nosso julgamento como se fôssemos o espírito da sapiência. O tolo, julgando-se sabedor, lança suas análises sobre o alheio. Mas quem já foi devastado pelos vendavais que a verdade faz precipitar em torrente; quem já começa a colher frutos porque lhe visitou a madureza, sente o travor da própria ignorância e passa, inexoravelmente, a ser severo consigo.

“Quem já foi devastado pelos vendavais que a verdade faz precipitar em torrente; quem já começa a colher frutos porque lhe visitou a madureza, sente o travor da própria ignorância e passa, inexoravelmente, a ser severo consigo”.

Escola do Caminho

Cada dia nos oferece inúmeras oportunidades de perceber. Cada encontro, cada conversa, cada situação aparentemente trivial pode se transformar em laboratório para o nosso desenvolvimento. É preciso, contudo, estar atento. Breve descobriremos que a chuva que a verdade, aparentemente inclemente, faz desabar sobre a lavoura de nossas ilusões, arrancando as ervas daninhas que imponderadamente cultivamos, não é aguaceiro que traz a morte, mas temporal libertador das ilusões que cultivamos. É aguaceiro que vem dos céus no obséquio de limpar nosso eito para a grande lavoura da maturidade espiritual. É, enfim, tempestade que prenuncia fartura. A realidade, quando percebida com isenção, se torna nossa mais generosa professora no caminho da compreensão e do amor.

Salve Deus. Jesus nos abençoe a todos…

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