1984: Chega Luís Adão
Cheguei ao Vale naquele domingo, contrariado e aborrecido. Aqueles mestres tinham-me derrubado, apesar da defesa de Batista em meu favor, o que não me convenceu. Nós aparás somos assim: frágeis e inseguros e qualquer um que duvide de nós, acaba com a nossa incorporação. Então, ali, em pé, perto do carro, da baratinha amarela, colocava o meu colete ainda muito aborrecido e desarmonizado com a noite anterior. Aquele mestre colocou-me em apuros comigo mesmo ao questionar a minha incorporação. Teria ele razão?
Fomos para aula de Tia Neiva e não foi fácil estar ali e encontrar uma sintonia. Fiquei preso naquele momento anterior e não estava no domingo, a não ser o meu corpo. Meus pensamentos estavam no sábado à procura de encontrar o errado: eu ou ele. Só um possuía a verdade. Se fosse ele o errado estava pronto para fuzilá-lo de vibrações. Na verdade já estava fazendo isso…
Acabou a aula de Tia Neiva. Veio a abertura do trabalho. Fiquei ali dentro mesmo, na parte evangélica onde, com dificuldade, tinha encontrado um lugarzinho no degrau do aledá para assistir e escutar Tia Neiva. Logo que terminou, saí dali e fiquei sentado no banco de espera dos aparás para a mesa evangélica. Terminada a abertura o comandante da mesa tocou a sineta e nos movemos para dar início ao trabalho.
Sentei-me para o início das incorporações e, por coincidência, fiquei em frente ao quadro de Tiãozinho. Olhava-o com muito carinho e também estimulado para pedir-lhe ajuda. Estava desarmonizado e por isso, desajustado de tudo. Sem sintonia, recorria a ele e àquela mesa na esperança de um auxílio. Não podia permanecer daquele jeito. Mas a questão era também devido a aquele fato sempre acontecer comigo: sim, desde a primeira incorporação já duvidaram de mim. Dali em diante parecia prática normal e eu estava já chateado com aquela história tão repetitiva.
Sei que fechei os olhos buscando sintonia com o comando e com os mentores quando de repente o pior aconteceu. Dei um grito para dentro de mim: “Meu Deus”!
Aquele velho de novo apareceu. Não, não é possível, pensei em quase desespero. Perdi de vez a condição de ali estar. Quis sair correndo e não podia. Fiquei em maus lençóis e as incorporações fluíam mais desequilibradas e agressivas. De um minuto para outro pensei: “deve ser a falange dele que está passando. Sua foto a mim mostrada nesse momento é para que eu passe todos eles aqui na mesa”. Esse pensamento me equilibrou, fazendo-me esquecer até do meu velho assunto, aquele bendito doutrinador, comandante dos tronos.
“Isso é Tiãozinho me auxiliando”, pensei comigo novamente. E arrematei: “esse perfil que estou vendo é de sofredor e ele quer se passar por preto velho. Eu vou lhe mostrar quem é mais forte”. O tempo em que fiquei na mesma seu perfil se grudou nas paredes do meu cérebro. Parecia rir de mim e do meu sofrimento. Contudo, era estranha e bastante confusa aquela situação por mim vivida. Parecia que via ele fora de mim, mas ao mesmo tempo como se ele estivesse dentro da minha cabeça. Aquela sensação era incômoda; causava-me irritação e certo desfalecimento, como se a minha pressão fosse chegar a zero. Horrivel…
Encerrou-se o trabalho da mesa e o comandante pediu para que os doutrinadores nos dessem passes magnéticos. Assim que recebi o passe, a imagem daquele velho desapareceu como que por encanto. Abri os meus olhos já de volta ao corpo. Tive a sensação de uma mudança brusca e violenta. Voltei a ver, precariamente, os movimentos dos médiuns que por ali passavam. Apesar do desaparecimento daquela imagem, os meus pensamentos estavam, dessa vez, muito mais desmantelados que antes. Calculei comigo que entre esse novo problema e aquele velho, preferiria o velho. Pensava no já superado doutrinador…
Saí dali e não vi ninguém. Na verdade não sei como, nem por onde saí. Meus pensamentos, naqueles minutos, precipitavam-se, aturdidos, multiplicando-se em mil desarmonias e perguntas sem respostas, que atormentavam a minha alma. Fui para Casa Grande e lá me refugiei, pensando estar protegido e seguro. Passei alguns bons e longos minutos. Voltando ao templo, ruminava em meu pequeno cérebro, imaginando o que fazer caso aquela imagem voltasse. Estava com medo. Isso era ruim. Fui para os tronos e trabalhei por algumas horas. Saindo, fui ao Pai Seta Branca; fiz minha prece e me dirigi para o meu lugarzinho preferido, em frente a Tiãozinho.
Quando me sentei, ele apareceu de novo. Falei tentando desvalorizar o que estava me matando. Aquele de perfil começou a me falar coisas que eu não compreendia bem; dizia se chamar Pai Ananias da Cachoeira. Era um preto velho e vinha me desenvolver, me preparar para algo que no futuro eu saberia. Chegou dizendo que eu devia confiar mais em mim mesmo, que era meu amigo e coisas dessa linha que eu não engoli. De onde vinha ele? Quem é esse nagô que não me dá chance de escolher se quero ou não esses contatos e simplesmente me arrebata do corpo como se eu não tivesse vontade, escolha? E que conversa é essa que ele tem comigo? Por que tudo isso está acontecendo justamente comigo? Será que estou desequilibrado, obssediado? Será que ele é meu cobrador?
Desconfiado comecei a conversar com Sonia, Batista e Tavares sobre o assunto. Eles acharam normal. Tavares agora estava um pouco mais distante, mas nos víamos sempre. Ele tinha assumido novas responsabilidades no Vale e isso estava lhe tomando quase todo o tempo. Certa noite, eles levantaram a questão daquele perfil que sempre me aparecia. Aconselharam-me que intensificasse minhas atividades no templo e fizesse todos os trabalhos. É que eu estava meio ausente, meio dividido entre os trabalhos e namorar. Acedi.
Disse-lhes que voltaria a minha frequência e acabaria com essas loucuras que estão quase a me desequilibrar por completo… Eu quero ser somente um apará. Incorporar meus nagôs e nada mais. Essa é toda a minha ambição. Não desejo nada além. O Pai sabe disso. Pois, que ele me ajude a acabar com essas alucinações e maluquices. Quanto àquele espírito que se faz passar por preto velho e se chama Pai Ananias, eu vou resolver isso. Vou falar com Tia Neiva ela é a única pessoa nesse mundo que pode me ajudar…
Procurei, de fato, falar com tia Neiva por mais de dois ou três meses e não conseguia. Ela estava impossibilitada pelos médicos. Sua pouca saúde estava ameaçada e todas as atividades dela foram suspensas. Ela já não ia tanto ao templo. Fizeram, inclusive, uma ligação do microfone da Casa Grande para o templo, assim ela dava suas palestras, agora, da Casa Grande.
– Que coisa! Pensava comigo mesmo. Só pode ser coisa feita por espíritos sofredores. Até Tia Neiva eles conseguiram isolar de mim. Meu Deus me ajude. Estou realmente preocupado e agora só.
Certa noite deite-me e logo me pus em prece. Rezei para todos santos e pretos velhos que conhecia. Procurei não pensar em nada e fiz uma técnica de relaxamento. Aquela que começa assim: eu não estou sentindo o meu pezinho, nem o meu calcanharzinho, nem o meu joelhinho… Enfim, até chegar para a cabeça, pensei, já estou no sono amarrado.
Muitos minutos se passaram e não conseguia dormir. A técnica falhou e falhei eu. De um momento para outro, vi no canto de cima da sala, perto do telhado, uma fumaça meio fluorescente em movimento giratório. De repente aquela fumaça foi se transformando numa imagem esculpida por mágica que eu não podia saber. Era um trono em forma de cadeira comprida, toda dourada. Imaginei ser de ouro. Nela tinha desenhos estranhos entre a cor vermelho e azul Veneza. Um homem de busto nu, com uma das mãos na cintura e outra presa ao corrimão da cadeira mostrando-se arrogante e prepotente. Para completar, enfeitava-lhe a cabeça uma coroa crescida em forma cônica tendo ao centro daquele ornamento a figura de duas serpentes entrelaçadas. Por fim, ele olhava como a me desafiar.
Naquela correspondência de olhares, pensei, subitamente:
– Não, eu não posso estar ali; não sou eu! Eu estou aqui.
Somente nesse momento percebi que estava com os olhos fechados.
– Meu Deus!
Dei um pulo e fiquei de pé. Agora mais calmo pude respirar. Quando olhei para baixo, vi que estava deitado com os olhos fechados que parecia dormir. Minha respiração era novamente ofegante, como a me faltar ar nos pulmões e minhas mãos, presas ao corpo, pareciam paralisadas. Tentei gritar e consegui. Acordei com Sônia Batista e Joana em cima de mim.
– O que houve Chico!?
Sim mestre era a imagem de um Faraó Egípcio, que surgiu ali do nada. Naquela noite só consegui dormir depois de algumas xícaras de chá de camomila. Sonia achou aquilo o máximo. Impulsivamente perguntei:
– Você é doida?
– Chico você está vendo. Você está abrindo a vidência!
Tomei a palavra da boca dela e disse que não repetisse isso novamente:
– Eu não quero. Eu quero a minha vida e não vou abrir mão disso, entendeu!
Sim mestre eu negava terminantemente e relutava até o fim de minhas forças para não aceitar aquela ideia. Dentro de mim, sabia que no dia que aceitasse eu estaria frito. Algo me dizia dessa maneira minha vida iria embora, escorregando pelas as minhas mãos.