Não se duvida do que não merece ser duvidado
Assumir aquela derrota foi duro. Mas na minha intransigência e arrogância, preso à minha insegurança e meus medos, continuei negando, agora, com muito mais gravidade. Estava negando os fatos e esse estado nos leva mais cedo aos estágios da loucura.
Os carros quebrados da última vez que eu viera do templo, naquela fatídica noite, além de me desarmonizar e entristecer profundamente, de certa maneira me assustaram e contribuíram para que eu passasse cerca de uma semana longe do Vale do Amanhecer. Aos poucos começava a me afastar da Doutrina. Supunha ser ali, a razão de tudo. Como também, perturbado como estava não tinha mais o que fazer: nem incorporar conseguia mais. Perdi completamente a sintonia.
Contudo, a minha derrota tinha me custado muito caro. Ela ficará impregnada em mim a gerar daquele momento em diante sérias dúvidas. Aqueles malditos carros abalaram seriamente as minhas convicções sobre a origem de Pai Ananias.
Agora começava a fraquejar em meus pensamentos. Como poderia acontecer tamanha coincidência? Sobretudo, como poderia aquele velho ainda me perseguir daquela forma tão implacável?
Eu, no fundo da minha alma, não estava acreditando que novamente eu ia passar por tudo aquilo, por todo aquele inferno, depois de tudo que eu havia feito, depois de todo esforço empreendido.
Era impressionante e assustador como, de um momento para o outro, minha vida foi mudada completamente, sem que me fosse dada uma mínima chance de escolher nem de reagir, e o culpado era aquele espírito, que não me dava tréguas.
Em determinados momentos, me sentia tão mal que comecei a ter crises de choro convulso; o pranto rolava de em minha face aliado a angústia que também corria em gotas do meu coração sem que eu desse conta do porquê de tudo aquilo.
– Oh! Minha mãe, onde está você que não me ajuda e me protege?
Era de Tia Neiva que estava falando.
Para piorar a situação, sentia que com os dias, Pai Ananias, se é que era ele mesmo, se aproximava de mim cada vez mais e isso contribuía muito para o meu estado triste e depressivo. Toda vez que ele chegava me colocava em desarmonia, em desequilíbrio e isso me fazia concluir que era uma interferência, afinal, se fosse de outro modo, pensei loucamente, eu ficaria bem quando ele partisse.
Mas não era só isso o que me fazia sofrer. Os dias se passavam, cada um mais estranho do que o anterior. Além das visões que tive nessa época, coisas estranhas aconteciam comigo: coincidências, premonições, cenas, fatos no trabalho, em casa; tudo era muito diferente, esquisito mesmo e me deixavam muito intrigado e preocupado.
Eu enlouquecera e me dava conta disso. Pessoas chegavam perto e uma pequena tela – muitas vezes amaldiçoada por mim – revelava espíritos que andavam ali por perto. Via sombras e vultos para todos os lados, animais estranhos e insetos. Depois ia ver, tinham desaparecido.
Cheguei a procurar um oftalmologista. Atribuí à minha visão cansada, a culpa do que estava acontecendo. Eu tentava me virar de todo jeito, só não pensava em aceitar aquela condição. Feitos os exames, aquele velhinho simpático e com cara de maluco, como a minha, murmurou baixinho para ninguém ouvir:
Você não tem nada na sua visão. Ela é perfeita. Quero lhe dizer uma coisa. Eu também vejo sombras, vultos e insetos como você. Vou lhe dá um conselho meu menino: procure um centro espírita. Você tem vidência.
Não entendia e não aceitava tudo o que se passava. As coisas aconteciam como para me provar algo no qual eu, insistentemente, não queria acreditar e, pelo contrário, esforçava-me por afastar tudo e todos que viessem com essas conversas.
Certo dia à tarde me arrumei, me preparei para ir trabalhar no Vale, afinal de contas, eu tinha esperança de me curar.
Separei minhas armas numa sacola, inclusive minha capa e rapidamente me punha em direção à parada de ônibus no percurso que me levaria a Planaltina e, de lá, finalmente, para o Vale do Amanhecer.
Quando passava perto de um portão de ferro, branco e todo fechado, meio comido pela ferrugem, escutei duas pessoas que conversavam e uma dizia para outra que fulano de tal, tinha pegado uma arma e apontado para a mulher. Quando olhei de lado, inclusive assustado pelo conteúdo, não tinha ninguém. Balancei a cabeça, e a mim mesmo disse que parasse com essas loucuras.
Não dei nenhuma importância; julguei ser um pensamento bobo, daqueles que nos chegam sem esperar aos quais não damos nenhum valor, nenhuma importância.
Desfiz-me daquele pensamento e daquela imagem e continuei minha caminhada. Ao dobrar a esquina, porém, de longe, avistei dois homens que conversavam e um gesticulava bastante, como se estivesse muito nervoso, contando uma história ao seu acompanhante.
Ao passar por eles, escutei nitidamente quando um falou para o outro. Aí, ele pegou uma arma e apontou para a própria mulher. Naquele momento, fiquei perplexo e não escutei mais nada. O mundo rodou e lembrei-me do que minutos atrás havia pensado.
O que queriam esses espíritos? Queriam me provar algo, fazer-me acreditar em algo que eu fazia questão de rejeitar. E tudo piorava para o meu lado: primeiro a visões imóveis, os quadros; agora, elas tinham vida, movimento…
Isso já foi suficiente para que eu me desarmonizasse por completo. Quebrara-se aí a minha sintonia e o pouco de harmonia que eu, com toda minha força, com todo meu querer, conseguira, naquele dia construir.
Como podia, pensava eu, coisas tão pequenas me desarmonizar a esse ponto? Como pode uma coincidência me fazer perder a vontade de incorporar?
De qualquer forma, nesse dia eu estava decidido a trabalhar. Nada me tiraria do meu objetivo e foi isso o que aconteceu.
Cheguei ao Vale ainda no período da tarde e vinha pensando como resolver o meu problema e sair daquela paranoia que vivia. Em dado momento lembrei que somente uma força iniciática seria capaz de afastar de mim aquele terrível obsessor. Sim, era isso. Se ele era forte, se resistira a uma prisão, ao trabalho de Aramê, eu queria ver se ele conseguiria me atormentar também depois de uma Estrela Candente. Era ali que ele teria que ser elevado.
Esse pensamento me chegou como pequena esperança de alívio. Sim, temendo nova decepção, não joguei todas as minhas expectativas. Coloquei-me então com duvidoso entusiasmo para próxima escalada que aconteceria ainda naquela tarde. Sim, ele não perderia por esperar e veria que não se pode fazer isso, que ele vem fazendo comigo, afinal eu tenho a meu favor, toda essa ciência, que me ajuda e me esclarece e ele, em seu rancor, em seu ódio, em sua falta de compreensão desconhece completamente todo esse universo… E fiz uma prece a Jesus:
Jesus afaste-o de mim. Mas não o castigue. Não tenho raiva dele. Somente desejo dar-lhe uma lição…
E por ai foi meu pensamento mestres…
Vejam só que loucura. Eu perdera o menor senso do que era justo ou injusto. O egoísmo é uma energia muito perigosa. Faz-nos cegar e é por isso que se diz que cego é aquele que não quer ver.
Assim foi feito…
Dentro de pouco tempo eu estava sentado no banco, à espera da consagração da Estrela Candente. Mentalizava o comandante que dirigia o trabalho e esperava o momento de incorporar, quando novamente levei um susto: um espírito muito alto passou por perto mim, quase me atropelando, como se fosse um gigante. Nunca vira ninguém tão grande antes. Eram homens e mulheres enormes, maiores que os postes de iluminação.
Eram cavaleiros. Caminhavam para um trono que tinha há pouca distância de onde estava e lá outros lhe esperavam. Havia também várias Guias Missionárias, todas vestidas como princesas.
Num dado momento aquele homenzarrão olhando para mim, a certa distância, disse-me que se chamava Fanário Verde, e que era o comandante da Estrela Candente naquele dia, pois era ele o cavaleiro daquele comandante.
Assisti admirado aquele quadro, sem possibilidade de raciocinar, de pensar em tudo aquilo. Preso àquela linda visão, nenhum pensamento ruim de dúvidas e incertezas me chegou. Minha mente parecia uma televisão, que somente nos mostra quadros sem neles interferir.
Era assim que eu estava. Não analisei, não pensei que podia ser obsessores e simplesmente mergulhei naquela sintonia. Eles eram lindos, com suas ricas e trabalhadas indumentárias… Na hora da prece de Simiromba, todos se levantam, numa profunda demonstração de respeito, assim como nós o fazíamos também no plano físico. Fiquei observando por algum tempo este quadro, até que eles desapareceram do meu campo mental.
Em dado momento do comando na terra incorporei-o. Sim, ele estava ao meu lado irradiando-me uma energia luminosa que me envolvia todo o corpo deixando-me todo iluminado. Do lado de cá estava eu vendo tudo. Um vento muito forte começou a soprar como se estivesse tentando nos levar para longe dali. A capa do cavaleiro esvoaçava como a não ter peso algum.
Todos incorporaram. Então outra entidade se manifestou. Sua energia era diferente e percebi que nunca havia incorporado ela antes. Mentalmente aquele ser iluminado pela luz do sol saudava e gesticulava como se estivesse diante de algo muito forte. Eu sentia o peso de meus braços quando eles levemente se quedavam para trás ou para frente devido ao sutil movimento que ela fazia. Com duas palavras saudava:
– Salve Tanoaê. Salve Achuamã!
– Salve Tanoaê. Salve Achuamã!
Repetidamente ele pronunciou estas palavras. Tive a sensação de que um vento muito mais forte abalava o recinto. Sim, agora ele era físico. A força do que sentia era tamanha que ele me pediu mentalmente que não tivesse medo, que confiasse, pois era ele que estava manipulando aquelas forças para o bem de povo e povos. Desequilibrei-me naquele momento. Era demais para mim:
– Meu Deus me ajude para que eu possa acreditar nisso tudo…
Salve Deus mestres, aquele foi um momento diferente de todos. Eu não pedira mais para afastar, mas para que eu tivesse recursos em mim de acreditar. Mudei meu padrão. Estava melhor, mas ainda distante do que precisaria.
Não resisti à minha incredulidade e lhe pedi que se realmente fosse ele que estivesse produzindo aquele fenômeno, que me desse uma prova física. Depois de alguns segundos, veio à minha mente a imagem de uma árvore caída, derrubada pelo vento. Gravei bem aquela imagem e ansioso agora esperava o fim do trabalho para ver se ela, a árvore estava ali mesmo caída.
Agora já não desejava que ela não estivesse. Queria aquela confirmação e então poderia enfim, acreditar em Pai Ananias como um mentor de luz e não mais um espírito malfazejo.
Ficamos ali mais alguns minutos, incorporados, dando sequência ao trabalho que já caminhava para seu término. Em poucos minutos o comandante pediu que aquelas entidades deixassem os seus aparelhos.
Após o encerramento saí dali preocupado, em busca das minhas comprovações. Precisava delas.
Caminhávamos agora, eu e mais alguns médiuns buscando os corredores de saída dali. Eles comentavam a maravilha daquele trabalho, qual não foi minha surpresa quando me deparei com a árvore caída como eu havia visto incorporado. Meu Deus, é verdade! Exclamei alto. Aqueles médiuns me entreolharam sem nada entender. Dentro de mim, escutei somente uma voz me mandando tirar os galhos quebrados e replantar, afinal, o culpado era eu.
Quando vi a árvore lembrei também da visão que eu tivera antes do trabalho. Corri ao encontro do comandante. Então perguntei:
– Salve Deus mestre, que lindo foi nosso trabalho. Qual é o nome do seu cavaleiro?
– Fanário Verde mestre. Mas por que a pergunta?
– Nada não, somente curiosidade…
Desconversei e saí para tomar um café, num estado de quem sai saltitando: um pé ali e acolá. Mas logo veio a ressaca. As cruéis dúvidas que carregava em minha insegurança.
Realmente eu não conseguia passar duas horas equilibrado…