O franciscano
Mais um ano despedia-se deixando para trás acontecimentos marcantes em nossas vidas. Tia Neiva esforçava-se por trazer tudo que podia na preparação que o Pai Seta Branca anunciara. Naqueles anos se daria a grande preparação do jaguar: consagrações, umas atrás das outras, emissões que se modificavam, rituais, chamados constantes, reciclagens, enfim, mensagens por todos os meios.
Algo já prenunciava que em breve tia Neiva estaria se despedindo, pois não tardaria o seu desencarne. Seu estado de saúde, por várias vezes a fazia baixar na cama de um hospital. Seus pulmões não funcionavam e seu sangue, carbonizado devido a não oxigenação, não chegava às extremidades do seu corpo, fazendo com que ela sentisse profundas dores. O balão de oxigênio com o qual ela respirava estava enchendo o pouco que restava de seus pulmões de água. Ela falava com dificuldade e mal entendíamos o que ela dizia.
Entretanto, mesmo com todas as dores, as atividades no Vale nunca foram tão intensas… Eu, Sonia e Batista praticamente não saíamos do Vale, junto com Tavares, Luiz Adão, Sinval, Joana d’Arc, Nadir e muitos outros mestres, mais tarde chegando Adriana. Formávamos um grupo unido pelas afinidades espirituais e Sonia nos trazia e nos mantinha informados sobre o estado da Tia, pois ela sempre fora mais achegada a ela…
Naqueles primeiros dias, o sol nos aquecia a alma de alegrias e esperanças, muito embora algo no ar prenunciava que aquele ano não seria fácil. A mensagem do Pai Seta Branca tinha sido curta e isso nos era motivo de abrir os olhos. Assim transcorreram os primeiros meses do ano, sem mudanças ou acontecimentos mais importantes. Nossas vidas percorriam o curso normal a não ser a tristeza por ver a tia, dia a dia mais distante fisicamente de nós. Seu estado de saúde inspirava tantos cuidados que foi instalado um microfone ligado diretamente de seus aposentos ao templo, para que ela falasse sem sair do seu quarto.
Eu via em tudo, prenúncios de mudanças bruscas. Em março, apesar de recém-casado, eu começava a sentir, de vez em quando, um frio na coluna que me fazia sentir uma angústia muito grande, me colocando num estado de tensão e alerta. Certa noite estávamos eu e Tavares na casa de Sonia e Batista. Conversávamos sobre a Doutrina, quando senti uma projeção muito forte. Em pouco tempo estaria incorporado. Era Pai Benedito, que nos saldou com o tradicional salve Deus.
Em poucas palavras nos prenunciou fortes acontecimentos. Tínhamos que nos preparar para as mudanças que em breve ocorreriam em nossas vidas missionárias. Ficamos todos muito preocupados com o conteúdo daquela mensagem. O impacto foi geral e não tanto pela mensagem em si, mas porque vinha de encontro ao que cada um há algum tempo sentia. Trocamos algumas palavras, alguns comentários e em breve nos despedíamos na intenção de buscarmos o sono reparador.
Fiz meu pequeno ritual e me preparei para dormir. Tive nessa noite um desdobramento, onde tudo começava a ficar mais claro. Eu estava numa grande sala, na qual parecia estar acontecendo uma comemoração, pois pessoas bem vestidas estavam ali, muitas das quais eu conhecia, como se comemorassem algum acontecimento.
Em um canto daquela sala, conversávamos assuntos doutrinários e em determinado momento eu me afastei em busca de ficar sozinho. Eu me sentia inquieto e por isso, agitado. Enquanto todos ali pareciam descontrair-se, eu me via em apuros incomodado por algo que não conseguia saber de mim mesmo. Vez ou outra, fixava meu olhar na direção da porta de entrada, pois estava em mim a sugestão de que a qualquer hora, alguém chegaria e entraria por aquela passagem.
Minha suspeita não era infundada. De repente notei que a porta se abria e um homem, vestido de franciscano com a cabeça coberta por um capuz, segurando um cajado caminhava em minha direção. Ele caminhou parecendo não querer ser notado. Dava mostras querer se esconder de todas aquelas pessoas naquele salão. Era estranho por que somente eu o notara. As pessoas ali não se davam conta daquela imagem caminhando lentamente próximo das paredes, evitando passar no meio delas.
Ele caminhou discretamente e à medida que circundava aquele enorme salão, obediente ao arquiteto, que desenhara as dependências daquela casa, veio ao meu encontro. Meu coração acelerou. Batia fora do ritmo e meus pensamentos eram tomados de ansiedade e angustia antecipada. Eram estranhas aquelas sensações, para mim, vindas do nada, pois, nada sabia ou podia prever do que aconteceria. Enfim, após algum tempo ele se aproximou de mim. Ao chegar foi logo dizendo:
– Meu filho, preciso vos falar. Peço que me acompanhes.
Eu tentava ver aquele rosto meio escondido e ofuscado pela sombra daquele capuz que o escondia. Observei-o procurando descompô-lo, mas suas palavras eram para mim, como uma ordem e eu somente me pus a obedecê- lo.Sua voz era doce e grave. Diria que a sonoridade acalmaria os mais acometidos de loucura. Nela havia algo sublime e familiar, como se a conhecesse ou se sua entonação me fizesse despertar, distante, lembranças guardadas por mim. As pessoas continuavam ali, esquecidas de nós, arrumadas socialmente em pequenos grupos a palestrar assuntos que não eram do meu interesse. Parecia que estávamos invisíveis a elas.
Saímos caminhando, fazendo curvas para nos desviar daquelas criaturas até que saímos dali por um corredor estreito. Após um longo percurso, paramos diante de uma porta larga, que se abriu com um simples toque de um de seus dedos. A minha frente uma linda paisagem se apresentou. Uma grande planície se perdia no horizonte. Sobre aquela terra, uma grama muito verde parecia caprichosamente colocada por grande maestro de jardinagem do espaço, assemelhando-se a um tapete esverdeado;
Em toda parte, ovelhas pastavam tranquilamente, com seus pelos de uma alvura intensa parecendo flocos de algodão. Tudo era muito bonito e o perfeito havia passado por ali. Encantado pela visão, esqueci-me dele. O céu azul cobalto se estendia como um espelho a refletir claridades incomuns; nuvens poucas se espalhavam distantes uma das outras numa atitude discreta. Ali e acolá uma árvore bonsai fazia-se notar pela diagramação perfeita, como se mãos hábeis tivessem feito poda cuidadosa e consciente.
Fiquei ali estático e perplexo a observar, sem compreender o que meus olhos registravam, ao lado daquele homem que também contemplava o esplendor daquele quadro. Passamos alguns minutos em silêncio e chamando-me atenção, despertou-me com as seguintes palavras:
– Meu filho, essas são as ovelhas que Jesus te confiou e ele não quer que se perca nenhuma. O bom pastor não se afasta de suas ovelhas.
E num movimento em câmara lenta, entregou-me o cajado que carregava consigo, colocando-o em minha mão direita. Despediu-se com um salve Deus. Fiquei ali parado por mais algum tempo, perplexo pela beleza daquele quadro e daquelas palavras que provocaram em mim um estado de emoção geral. Segurava o cajado que alcançava acima da minha cabeça uns dois palmos e notei que seu aspecto era bastante antigo, como se tivesse sido feito de uma madeira velha, já bastante usada. Decorava-o linhas finas e alongadas e entre elas um claro escuro deixado pelas marcas do tempo.
Aquela visão, aos poucos foi se desfazendo e quando dei por mim, estava sentado em minha cama, ofegante, como se estivesse com falta de ar. Assustado procurei o interruptor para trazer luz aquele ambiente. Não o encontrei. Estava desnorteado. Então procurei por socorro chamando por Sinval que dormia ali perto e que me atendeu.
Sim, aquele homem em espírito tinha sido Francisco de Assis. Aquela visão tinha sido impressionantemente real. Não se parecia com um sonho. Ficou gravado em minha mente o tom de suas palavras e a expressão profética, como a querer falar-me de um futuro próximo que me aguardava. Ovelhas; rebanhos, Jesus… Tentei adivinhar. Só podiam ser os pacientes que as entidades atendiam comigo, como apará, Associei tudo aquilo de um modo que queria, bem satisfatório às minhas conveniências. No outro dia contei para Batista e Sonia…