Adeus, Brasília!
Hoje é 27 de novembro de 1986, véspera do dia marcado por pai João de Enoc para que deixássemos Brasília e partíssemos para aquela que seria nossa jornada nessa encarnação. Alguns dias antes, já começavam as despedidas dos familiares, dos nossos entes queridos, que, com o coração dilacerado, fomos deixando na distancia do cominho já percorrido. Estávamos vivendo dias agitados. Era uma tensão preparatória da viagem. Além do mais, conselhos amigos, advertências, pedidos, também brincadeiras a nosso respeito, tudo isso nos levava a um certo esgotamento.
Além do mais, as nossas incertezas, causadas pelo nosso próprio estado de excitação pelos dias passados, onde procurávamos solucionar todos os problemas que surgiam ou que pudessem aparecer para contrariar o fluxo normal daquilo que pretendíamos. Tínhamos a sensação de estar nadando contra a correnteza. Os únicos minutos de alívio que tínhamos era na segunda e sexta feira, quando pai João de Enoc nos reunia… Ele afirmava constantemente que tudo estava preparado e só precisávamos de calma para a resolução dos nossos problemas. Partiríamos no dia marcado às 06:00h da manhã, e nada poderia impedir a marcha de vocês.
Para mim, é muito difícil descrever aqueles últimos momentos perto dos nossos familiares, compor aquele quadro de sofrimento e dor, de despedida e adeus. É como tentar desvendar o que se passa em muitos corações, tarefa só realizável por Deus e ao mesmo tempo traduzir o que cada um de nós sentia naqueles breves momentos, na eminência de nos separarmos. Amanhecemos no mesmo afã da correria. Bem cedo começaram a chegar as visitas. De vez em quando alguém nos perguntava se teríamos coragem realmente de fazer aquela viagem. Mas na verdade, começávamos a sentir o sabor amargo da despedida e as conseqüências que nossas decisões haviam causado. Cada um que chegava nos deixava um sentimento de quase arrependimento. Com enorme esforço tentávamos disfarçar nossas emoções, que, aos nossos olhos saltitavam trazendo-nos minutos de uma amargura inesquecível.
Minha mãe vez ou outra passeava entre nós, carregando lágrimas nos olhos; estava inconsolável, pronta para explodir em choro, e, não suportando mais, disse com a voz embargada que se nós quiséssemos ir, que fôssemos, mas que não levássemos os seus netos, nossos filhos, e abraçou-se com Sonia, em pranto desesperador, implorando que ficasse. Por sua vez, Sinval, meu irmão, fazia suas últimas investidas na tentativa de nos desencorajar:
– Vocês são loucos? Como podem fazer isso? Largar tudo aqui para ir embora! Não têm emprego, não conhecem ninguém para onde vão! Nem mesmo casa vocês têm lá. E as crianças, vocês já pensaram?
E se dirigia para Adriana:
– Você sempre me pareceu ter bom senso, ser coerente; quanto a Chico, Sonia e Batista, esses não, sempre foram alucinados, mas você? Como pode largar tudo assim?
Nós escutávamos tudo aquilo e de vez em quando esboçávamos uma resposta, mas sabíamos que não era convincente a ninguém, mas compreendíamos porque a dor deles era mesma. Selma, minha irmã, havia ligado e deixara um recado de que não queria nos ver de forma alguma e muito menos a partida. Sandrinha, Carlão, Eduardo, Cláudia, enfim, todos eram unânimes em dizer estávamos loucos, perturbados. No quarto fora da casa meu pai fingia trabalhar, e, vez ou outra em que eu passava por perto na esperança de algum apoio o via chorando baixinho. Isso me cortava o coração, como lava sobre meu corpo.
Assim também acontecia com Adriana e seus familiares, que faziam plantão no telefone; Joana d´arc, que também deixou a família, de minuto em minuto era chamada para atender a uma ligação. A noite chegara devagar. O céu avermelhado parecia refletir o nosso interior; estava avermelhado e deitava-se por trás dos montes, nos transmitindo algo de muito triste. De pé no portão observava alheio o movimento da casa. Em meu pensamento uma certeza pairava: que o mesmo Deus que criara aquela maravilha estava conosco naquele triste desenrolar de dores, que causávamos e sentíamos, porque tudo era por amor a ele, como nos ensinou Tia Neiva. Comecei lembrar dos bons tempos de menino em que brincávamos naquele quintal; chegara em Brasília com apenas um ano, e ali criei todas as minhas raízes. Sentia muita dor por ter que, depois de vinte e sete anos, deixar tudo aquilo para trás…
Uma lágrima teimosa insistia em rolar em minha face, e meu coração experimentava um desespero jamais sentido em minha vida; com muito custo controlei minha respiração, para não demonstrar minha dor e desesperar mais ainda os que ficavam. So despertei quando o caminhão parou em minha frente. Era aquele caminhão que levaria a mudança. Já era noite; eu chamei o pessoal e rapidamente começamos a arrumação da mudança. A consternação era geral e eu via isso através de Sonia, Adriana, Batista, Joana,… O quanto é difícil deixar os que amamos…
Era necessário mais do que nunca ter coragem naquela hora. Entrei rapidamente em casa e escutei um choro meio abafado. Era Sonia que chorava escondida para que ninguém a visse. Fiz meia volta; fingi não vê-la e saí de casa, indo encostar-me num poste de luz em frente. Tudo fervia; eu não coordenava meus pensamentos por mais que me esforçasse. Como seria cuidar das crianças; e Nayara? Adriana já estava com o rosto inchado de tanto chorar… Mas de olhar fixo no infinito, comecei a rezar, pedindo por todos que se lançavam naquela viagem. As energias em mim, aos poucos foram sendo substituídas por uma paz que parecia ser dos anjos.
Oh Jesus, este é o meu primeiro canto. Vivo Jesus, o despertar das revelações. Porém não sei defini-las. Sinto Jesus A vida penetrando na morte em busca de sua raíz, e sofro; Sofrem também comigo, meus irmãos, Meus entes queridos, meus antepassados. Sinto Jesus O encontro dos átons e seus eflúvios. Jesus vivo num mundo onde nada se explica! E tudo se confirma na visão do tempo, do mundo, da razão; passado, presente e futuro... A individualidade explica o homem, E o homem vive em Deus pai todo poderoso, em suas formas, em seus princípios, tecendo o seu próprio caminho, sua evolução. Abrem-se as três portas da vida, do tempo, dos três reinos, dos três ciclos, Onde o homem caminhará na sua origem, na sua dor. É Jesus, o fechamento da velha porta, da velha estrada, Porque O homem chora a sua despedida e no adeus clama pelo espírito consolador. Jesus, este é o meu primeiro canto, No meu quinto ciclo iniciático, a caminho dos Yurês, E na força que emana da madrugada onde o homem em seu sono busca encontrar o seu destino, Venho pedir o conforto da fé. Abençoa Jesus, a todos nós, E que tua misericórdia alcance e ilumine a todos nós, que sofremos por amor. Jesus, que queres que eu faça? Em nome do Pai, filho e espírito, Salve Deus.
Depois deste momento todos nós sentimos um certo alívio nos corações, e mais calmos, continuávamos as arrumações e últimas despedidas… A noite foi avançando e ninguém consegui dormir. Toda a minha família se trancou na casa de cima e nós ficamos no barracão de baixo a comentar o dia que passara, bem como arrumando as últimas coisas. Um silencio assustador tomara conta de todos, que de vez em quando era cortado por uma advertência no sentido de nada faltar ou esquecer. Sentado num canto da sala, mentia para mim mesmo, tentando ser forte. Na verdade este dia cravara suas unhas em meu coração, tanto que ninguém olhava para ninguém. Já era de madrugada, e tínhamos que tentar dormir, pois seis horas da manhã estaríamos de pé, na estrada.
Ás cinco horas fomos acordados por Tavares e Winston, que acabavam de chegar. Colocamos tudo no carro silenciosamente para que ninguém percebesse, mas foi inútil: minha mãe já estava de pé aos soluços. Também chegaram seu João e dona Margarida, os pais de Adriana. Foram os últimos abraços…
Os primeiros raios de sol surgiam no horizonte. O carro deslizava pelo asfalto percorrendo a estrada que ligava Sobradinho a Planaltina. Dentro do carro ninguém falava; todos silenciosos olhavam pela última vez aquela paisagem tão familiar para nós. De repente um soluço acompanhado de choro. Sim, todos começamos a chorar copiosamente; lágrimas saltavam de nossos olhos como que queimando toda a nossa face; no volante do carro eu chorava baixinho, mal conseguindo ver o asfalto em minha frente. Íamos eu, Adriana, e Nayara; atrás, Sonia, Batista e Joana, com as crianças Rodrigo, Stela, Clitya e Tayná, que era recém-nascida. Naquele momento o choro era o desabafo merecido…
Foi difícil superar a ausência dos nossos familiares e amigos. Porém tínhamos em nossas mentes a convicção verdadeira de estarmos corretos, e essa confiança aliada a presença constante dos nossos mentores, foi que nos possibilitou, em terras distantes, vencer as dificuldades tão grandes que iríamos encontrar, sempre amando, sempre com saudades, sempre relembrando, sempre uma lágrima tentando escapar, na dor da despedida…