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Experiências de um leigo

A cachoeira

Segunda-feira tinha sido normal; como é, geralmente, todo início de semana. O dia passara sem mais novidades, a não ser pela balbúrdia habitual, característica dos dias de trabalho intenso. Entretanto, aproximava-se a semana santa daquele ano de 1979. 

Por minha vez, eu planejava algum programa para aquele longo feriado por todos tão esperado. Buscava algo diferente que pudesse fazer com meus amigos naqueles dias que se anunciavam promissores.

Mas, melhor do que eu imaginava, não precisei de nenhum esforço nesse sentido, pois logo naquela noite recebi um convite que: a minha velha turma de amigos – aqueles mesmo de infância, haviam combinado um acampamento num lugar muito bonito, perto de Brasília, conhecido como Lagoa Azul. O programa desde logo me agradou: lá ficaríamos quatro dias brincando, e bebendo; enfim, “numa boa”, como costumávamos dizer.

Logo calculei que seria o programa mais bem pensado para aquela semana santa, pois não estaríamos expostos a nenhum risco por aglomerações em praças ou clubes, mas somente com os amigos de dentro de casa. Tomando ciência dos detalhes, acertamos tudo para sairmos na quinta de manhã em direção ao nosso destino, pois o caminho era longo e não queríamos perder tempo. Mas, antes, especificamente na Quarta-feira pela noite, passei no Vale para tomar umas bênçãos e me proteger para aquele passeio…

Na Quinta-feira de manhã estava pronto, com meus pertences devidamente organizados para nosso passeio, entrelaçado na velha sintonia com a qual já estava acostumado… Chegamos por volta de dez horas da manhã num local muito bonito e agradável. Logo que armamos as barracas e arrumamos as coisas fomos dar um passeio. Entretanto na verdade eu não era mais o mesmo de antes, pois não sentia mais prazer nas mesmas coisas de antes, como beber e ficar conversando bobagens…

Mesmo assim tomei uns goles, afinal assim seria mais fácil e agradável aquela aventura, e fiquei logo tonto, a brincar com a turma, mas demonstrando já, uma falta de resistência ao álcool. Eles não demoraram a perceber o meu estado e imediatamente todos zombavam de mim:

– Você não é mais o mesmo. Olha aí crente, o que você foi arrumar, não aguenta nem um gole… 

Essas brincadeiras me chatearam e fiquei então meio cabisbaixo, meio triste, passando aquele dia a muito custo, ouvindo gozações a respeito do que eles nem imaginavam ser. O segundo e o terceiro dias foram do mesmo jeito, e para suportar aquilo tudo, fui beber. Já era o último dia e resolvemos conhecer uma cachoeira que ficava não muito longe de onde estávamos. O caminho foi fácil, só um pouco distante, mas enfim chegamos a um lugar muito bonito: pedras emolduravam o lugar e o sol brilhava solene no alto, o que me dava um calor muito grande, pelo pouco que podia ver e sentir, pois tinha bebido razoavelmente e estava tonto. A vegetação trazia um verde alegre a todo aquele quadro e o barulho da cachoeira era a música que os nossos ouvidos tinham naquele momento. A admiração era geral e a água fresca convidava a um banho. Foi então que uma bela queda d’água de aproximadamente uns cinquenta metros se fez ver aos nossos olhos; era um imenso abismo pedregoso, colorido pelo verde selvagem que se mostrava abaixo de nós. Fiquei a observar toda aquela paisagem de cima de uma pedra, desobedecendo aos cuidados e reprovações de todos.

A certa altura, decidimos caminhar pelo outro lado e tentar alcançar ou encontrar o caminho para descermos aquelas encostas. Todos saímos com cuidado, receosos pelo lodo que se acumulava nas pedras. Dei umas dez passadas quando o meu pé de apoio escorregou, perdendo o equilíbrio. A queda foi inevitável e escorreguei rumo ao abismo. Comecei a gritar, pedindo ajuda, pois “caminhava” na direção daquele vazio. Senti minhas pernas caírem no nada, me agarrando desesperadamente a umas ramas e lodos, que, se puxássemos com os dedos saíam. Todos correram desesperadamente, me puxando daquela beirada, onde eu despencaria de vez, o que só não aconteceu graças a não sei o que.

Saímos imediatamente dali, apavorados que ficamos com o susto e o que quase ocorrera. Particularmente, fiquei muito assustado, em choque mesmo, e escutei meus amigos dizendo que somente Deus impedira minha queda. A ideia de morrer me colocou em choque. Como poderia aquilo estar acontecendo comigo? Cheguei ao acampamento e comecei a repassar o meu comportamento. Pensei nos últimos dias, na minha casa, nos meus familiares, lembrei-me do que Tiãozinho havia falado: “vai ser perigoso…”.

Voltei naquele mesmo dia para casa, com um sentimento amargo de arrependimento e medo. Tiãozinho não me saía da cabeça um só minuto; ele sabia o que ia acontecer e eu estava chocado com tudo aquilo, pois fora muito perigoso e por um milagre eu não morrera. Eu recebera uma lição e começava a sentir que minha vontade estava bem reduzida e decidi que daquele dia em diante, ia pelo menos pensar no que diziam as entidades, e seguiria os seus conselhos, sempre os levando em consideração…

Assim fui sendo trabalhado pelos mentores, nossos amigos invisíveis; fui colecionando minhas lições, muito embora agarrado ainda a tudo que eu trazia de minha educação que ainda atrapalhava muito o meu entendimento e desenvolvimento.Eu era muito ingênuo, mas, partir desse dia, comecei a conhecer Tiãozinho, quem era e o que representava, pois antes eu não sabia nada, nada mesmo. Naqueles encontros ele me despertou algo intraduzível, e tão logo estava no Vale, procurava por ele, na vontade de conhecê-lo melhor, tomado por uma curiosidade, mesmo não escondendo minha preferência por Pai Joaquim de Angola…

Só retornei ao Vale no domingo, para o desenvolvimento, ainda me culpando pelo que havia acontecido. Novamente não incorporei, e fiquei por ali, contudo já aceitava a minha situação. Ao término da segunda palestra, subimos para a Estrela Candente para almoçar. Eu Sonia e Batista fomos comer arroz com banana, pois a situação estava também feia financeiramente. Nesse dia não reclamei de nada. Muito pelo contrário, contei o que me tinha acontecido e eles ficarão boquiabertos, por não ter morrido e também pela comunicação daquela entidade, com a qual Sonia já havia conversado algumas vezes. Pedi para me levarem até ele, que eu queria vê-lo novamente.

Assim aconteceu. Na quarta-feira fomos para o Vale. Na fila dos tronos, Sonia fazia o trabalho de diplomacia, para que passássemos em Tiãozinho, que trabalhava no penúltimo trono com a ninfa chamada Telma. Enfim chegou a minha vez e eu estava muito receoso do que iria escutar. Mas minha surpresa foi maior quando, ao chegar ao trono não era ele que estava incorporado, mas outro preto velho, que eu também não conhecia, chamado pai João de Enoc. Não me deu muita conversa, e foi logo desincorporando. De repente escutei:

– Salve Deus, salve Pai Seta Branca, salve Justininha.

Pelo tom da voz e entonação reconheci a figura de Tiãozinho.

– Como foi o passeio, foi bom?

Fiquei desconcertado e não soube responder. Senti-me como alguém errado, sem argumentos diante de um vitorioso, e, é lógico que esse sentimento era meu e não dele. Depois de um tempo voltou a dizer:

– Quase que você passa para o outro lado. Foi brincar e se deu mal. E agora, com que cara vai ficar? Não quis me ouvir, eu te falei, Tiãozinho te falou e você não deu bola, quase que vai e só não foi porque Tiãozinho segurou suas pernas.

Fiquei calado. Realmente ele tinha razão em tudo e estava me ensinando isso agora. Quis me sentir mal, ferido em meu amor próprio, mas não podia, percebia claramente que em suas palavras não havia essas intenções. Ele estava me ensinando e eu não gostava de aprender. Ele então voltou a dizer:

– Tiãozinho sabe sempre o que fala e se você tivesse me ouvido estaria livre dessa vergonha.  E eu já te salvei duas vezes. A primeira, você se lembra daquele bar, naquele dia do apará incorporado com e exu. Pois é, foi eu que lhe tirei dali. Dessa vez foi a segunda. Não haverá a terceira, portanto, vê se aprende logo, você é inteligente.

Assim eu o escutei de cabeça baixa. Em seguida saí de fininho, com mais uma rica lição. Assim fui aprendendo, e colecionando minhas histórias. Muitas vezes era tomado por uma revolta, mas aos poucos fui compreendendo minha missão. Hoje olho para trás e fico recordando todos estes acontecimentos.

Sim mestres, seria tão mais fácil se aceitássemos com humildade aquilo que é nosso caminho. Sofremos tanto lutando contra os nossos próprios desígnios, contra aquilo que nós mesmos escolhemos e aceitamos antes de nascer para esta jornada. Vamos meditar sobre tudo que estamos vivendo e colher daí as nossas pérolas, que são as nossas aprendizagens nesse caminho. Salve Deus.

Brasília, 1979.

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