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Experiências de um leigo

Crise: oportunidade de mudança

Os dias iam se passando; semanas iam compondo os meses e os meses os anos. Estávamos agora em 1977. 

Eu crescia independente do meu querer. Mas só por fora. Por dentro me recusava. Falei da Taberna, o bar. Tenho que dizer que ali era o nosso ponto de encontro daquela época, tornando-se para mim um lugar dos preferidos, por isso, muito frequentado. Tivemos momentos bons e também os exageros que a idade adolescente sabe compreender e explicar. Ali nos juntávamos sempre em festa, afinal, aquela era uma sintonia que nos atraíam. Mas depois do que me aconteceu, o contato com exu, eu ia demorar a voltar ali. O medo apoderou de mim como dono e senhor da minha vontade.

O comércio ia mal e vivíamos dele. Então íamos mal também. Tudo na verdade ia mal. O dinheiro faltou de vez. Se antes o negócio era desagradável, agora estava feio, nos colocando em dificuldades sérias. Tudo começou a faltar. Eu arrumei um emprego numa firma de modulados e Sinval também começou a trabalhar. Era pouco mais dava para gente ir se virando enquanto pai lutava para se aposentar.

Sinval trabalhava e comprava roupas usadas na feira do rolo. Desnecessário dizer que não tinha dinheiro para comprar roupas novas. Ele trabalhava no INAN e saía pela porta dos fundos porque tinha vergonha de sair pela frente. Dizia inclusive que podia cruzar com o antigo dono da roupa e não se sentiria bem. Lembro dele arrumando a camisa torta no peito, perto de um abat-jour vermelho bem alto, com o suporte todo em anéis de madeira, falando que, se num dia água, no outro vinho. Sinval ria de tudo. Brincava com tudo. 

Os místicos de toda ordem e gêneros apareceram no fantástico, programa da globo. Era final de ano. Profetizavam para o ano que vinha, 1977. Diziam que sete é número de sorte. Só para eles, por que para nós a coisa ficou pior. Mas o comércio naquele janeiro de 77 estava fraco, como sempre é o comércio depois do natal e as lojas não vendiam coisa nenhuma. 

É sempre assim no início de cada ano. A cidade também já tinha perdido o cheiro do natal, como um encanto que termina; as vitrines voltavam a ter uma normalidade. Não tinham mais o vermelho do natal, o frio que faz em dezembro; a promessa de vida nova sumia e o ano cor-de-rosa ficava cinza. As chamas do natal viravam cinzas. Parecia que devagarzinho tudo ia sumindo dos nossos corações e voltava ao normal, uma normalidade sem graça, cotidiana, anormal. Mesmo o ano novo, que antes era novidade, devagarzinho, dia após dia, hora após hora ia também deixando de ser novidade. Pobre: mal nascia, começava a morrer.

Janeiro nos deixou lento. Tudo era lento. Nossos conflitos nos cansavam; nossas expectativas, o dia-a-dia preenchia tanto o nosso tempo que nos tornávamos maçados, maçantes ou sei lá o quê. Assim, tudo era lento. Fevereiro chegou; trouxe o carnaval; toda a nossa turma pulou os quatro dias no SODESO. Depois do carnaval veio o São João repleto de nostalgia. Meu pai novamente enchia os olhos d’água por causa da saudade de um nordestino “cabra da peste” que deixa seu torrão natal e vive castigado pela lembrança nas terras distantes do “sul”.  

Ficava de olho na televisão para não perder Luiz Gonzaga cantar Asa Branca. Então chorava relembrando sua terra, seus amigos e seus sonhos idealizados ali, agora, mortos por uma triste e difícil realidade: a de viver na cidade grande… Todos diziam que era o hino do sertão. Eu não gostava muito; preferia Elvis, como era de se supor para um jovem de 18 anos. Hoje prefiro Luís…

Lá fora, Sinval pegou um resto de charque congelado; improvisou uma fogueira e assou o naco de carne. Dizia que tinha comprado um boi e ia dar uma festa para toda vizinhança. Ainda lembro do reflexo da chama no seu rosto e do graveto que ele usava para mexer o pouco que ardia. Nesse dia mãe riu muito da fogueira e do seu boi de poucos gramas. Ela não cansava de gostar de tudo que fazíamos e ainda hoje conta isso para todos que chegam lá em casa, mesmo tendo passado tanto tempo da morte de Sinval…

Assim correu 1977. Junho trouxe julho, agosto e entramos novamente nos aproximávamos d final do ano. Setembro trouxe a notícia da gravidez de Sonia, que encheu de uma dupla alegria a casa, pois Selma daria a luz em janeiro e Sonia, teria um filho no final de maio do ano que já se anunciava, sobretudo em nossas expectativas de superarmos nossas dificuldades tantas e fartas: 1978 surgia esperançoso. A chegada do natal trazia novamente o cheiro doce da feira modelo; as vitrines se enfeitavam de novo, na esperança do lucro, anunciando mil e uma promoções, descontos especiais, pagamentos divididos em muitas vezes e os carros de som de novo iriam desempoeirar o ‘jingle bells’ tão característico. A vida ia se repetindo, como se fosse uma ciranda de roda, onde passamos sempre pelo mesmo ponto; no nosso caso, com uma dor diferente a cada volta…

O natal foi sofrido. Não conseguimos manter a sintonia dos natais anteriores. 76 diminuiu para 77, que diminuiu para 78, que diminuiria mais à medida que chegávamos para a casa dos oitenta. Era a tendência e ela não mudou. Parece estranho, mas era a nossa situação. Tudo desapareceu de uma hora para outra. Agora, parecia que estávamos numa vida diferente, que não era a nossa. Necessidades, sofrimentos, desajustes, enfim, parecia que o sonho havia acabado. Assim se passou o ano de 1977. Retornei ao vale mais duas ou três vezes. Sei que melhorei muito daquele comportamento estranho, de desregramento. Estava mais equilibrado. Até trabalhando.

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