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Experiências de um leigo

Adeus aos sonhos ilusórios

Meu filho, deves despertar agora, e libertar a tua mente dessa amnésia, necessária somente para aqueles que ainda não conquistaram o amor. Deves seguir, ser obediente ao chamamento deste momento e abrir um novo ciclo em tua vida “vida” . Relembra filho, 1976 , quando pela primeira vez, esteve aqui conosco. Já ali, no plano oculto de sua vida, eu atuava no meu silêncio e nas impossibilidades causadas pelo adormecer de sua memória espiritual. Por isso não me via. Agora posso estar, porque, apesar de ainda não ter despertado completamente, já podes me ver. Então me escuta, pois, não tens tempo e nem eu, a perder. Deves se preparar para a grande jornada que se inicia. Você nasceu para cumprir uma missão, entregue a ti pelos grandes iniciados. Não pode fugir de teu destino cármico, ou se “perderá na escura noite do passado”. Pai Benedito.


Nós éramos comerciantes muito bem sucedidos. Tínhamos lojas de tecidos e naquela época do começo de Brasília nos anos 60, quando nos mudamos para lá, comércio era uma fábrica de dinheiro. Tudo foi indo muito bem até meados de 1976.  Novembro trazia os ares do natal e as lojas faziam de tudo para vender o mais que pudessem. Sei disso, principalmente, porque morávamos no centro comercial de Sobradinho, e constantemente, no ir e vir para casa, passávamos pelas vitrines – todas enfeitadas e coloridas, anunciando mil e uma novidades e promoções para aquele natal. Eletrodomésticos, calçados, roupas ou cortes de tecidos finos. Havia chitões também; joias, brinquedos para as crianças, lembranças pequenas para os menos afortunados, pequenos enfeites, agendas natalinas, velas perfumadas, enfim, tudo para todos; badulaques mil. 

Um pouco mais distante ficava a feira Modelo. Lá vendiam frutas natalinas: pêssegos, uvas e outras tantas mais, que não me lembro. Volta e meia um ou outro carro de som passava perto de casa tocando o jingle bells. Fui jogar bola. No final de semana, domingo pela manhã, tínhamos um jogo marcado no clube, contra um time de outro bairro, que agora não recordo. Como eu adorava jogar futebol, acordei cedo, pulei da cama, passei pela cozinha e já caí com meus apetrechos, pronto para a empreitada.

Era a decisão do campeonato. Ganhamos. O nosso time levava o nome de Piauí Bode Clube. Homenagem ao estado do Piauí.Terminado o jogo, fomos à Taberna, um bar, perto de casa, comemorar o feito. Ficava na quadra 10, perto, também, do clube onde acontecera o jogo. Bebíamos enquanto o tempo se estragava ao passar ali por nós. Assim a noite foi caindo e junto a ela, eu que já tonto, andava como se não tivesse joelhos, de pernas soltas… 

Resolvemos ficar ali, conversando enquanto o domingo avançava. Uma piada aqui, um comentário ali, e as horas iam morrendo. Pedimos algo para comer enquanto brincávamos e contávamos casos divertidos.  Meu irmão Eduardo não parava quieto; era o mais novo e o mais entusiasmado; era também o encarregado dos favores e mandados, o que sempre fazia de mal grado. Quando levantava sempre dava um ou outro chute na bola que ali, quieta nos acompanhava. Passamos muitas horas assim…

À medida que ia escurecendo eu ia ficando cansado. O resto da turma também. Maroca estava sentado em minha frente e contava uns casos mentirosos de uns parentes seus lá de Minas; de vez em quando ele interrompia a narração, levantava e ia lá dentro, a outra dependência do bar; na volta dizia que havia um grupo animado por lá, aproveitando o espaço em que as nossas namoradas tinham ido a casa tomar banho, trocar de roupa e voltar. 

Não demos atenção àquele comentário e continuamos em nossa mesa, onde uma batucada de vez em quando acontecia feia e morna, mas logo se dissolvia devido à nossa total ignorância musical. As meninas retornaram do banho e ali permanecíamos juntos sem ter o que fazer. Berão, assolado pelo álcool, subia nas mesas e recitava raivosos discursos antimilitaristas. No final, recitava Castro Alves. “Auro-e-verde pendão da minha terra, que a brisa beija e balança”… 

Sorríamos daquilo enquanto seus olhos e face tomavam-se de expressões magoadas e febris, inflamadas pela cor avermelhada que lhe cobria o rosto, feito ave galinácea, da família, gallipavo meleagris, conhecido como peru. Seu sangue lhe enchia as veias à menor contrariedade. Constantemente, uns e outros sujeitos levantavam, iam lá dentro e voltavam zombando de algo que por lá acontecia. Eduardo já nem ficava mais na mesa. Eu estava muito cansado e por isso não havia levantado do meu lugar até então. Nadja, com quem eu namorava, foi ver o que acontecia e voltou muito preocupada e tensa. Perguntei o que houve, ao que ela me deu um nada como resposta.

Berão me disse que o que chamara a atenção do pessoal era um homem meio esquisito, de um centro espírita famoso lá pelos lados de Planaltina que estava ali, em outra mesa, mais escondida, e por isso, os meninos estavam indo até lá. Ignorei. Nunca tinha ouvido falar neste tal centro e não era assunto pelo qual me envolveria por simples falta de interesse. Por isso continuei sentado. Era mais interessante. Berão começou então a falar sobre o tal centro espírita. Disse que era um lugar meio estranho, onde as pessoas vestiam umas roupas esquisitas, faziam vários trabalhos, mas que também era muito divertido, muito engraçado assistir uma sessão deles.

Enquanto isso a romaria continuava; Maroca, Eduardo e outros se mudaram para o que acontecia lá dentro. Desde então não saíram mais. Angustiado, preocupado e talvez um pouco curioso, levantei; fui ver o tal sujeito. Era um amigo nosso, mais distante, um conhecido. Gétnei, era o seu nome. Tratava-se de um rapaz forte, musculoso e estava sentado num banco azul de ferro onde parecia receber um espírito. Em volta, todos de nossa mesa, também sentados faziam um cinturão em torno dele. Mais ao lado, duas mulheres bonitas e provocantes bebiam, riam e batucavam baixo, quase num sussurro. Ele, o tal espírito, também bebia; havia cachaça perto e ele de vez em quando tomava um gole, rouquejando:

– Saravá meu santo, sarava meu ego, ego ebó suairê suaíli!

Hoje, sei que pedia que sacrificasse uma cabra e lhe desse de presente em homenagem a seus ancestrais que estavam ali. Eu era um. Aquela entidade deu o nome de Zé Pelintra. O apará suava muito e cheirava mal. Volta e meia estralava os dedos numa atitude que eu desconhecia, mas que também não me interessava. Nunca havia presenciado nada desse tipo de coisa. Era totalmente ignorante e um medo apavorado me chegava, sinal de que era hora de ir embora.

As brincadeiras continuavam e os meninos zombavam dele, que, por sua vez, fingia não entender ou não escutar. Vez ou outra erguia a cabeça em minha direção, como a me notar um pouco distante daquele círculo. Então não sei o que me deu. Cansado daquelas meninices já excessivas, me ressenti. Sempre fui contra zombaria e piadas que degradassem a imagem de quem quer que fosse, e, para mim, aquele rapaz estaria se sentindo ofendido, ultrajado pela baixaria que girava naquele grupo em torno dele. Lá fui eu na minha mania de defensor dos fracos e oprimidos.

Parti em sua defesa, advogando em seu favor, atacando o pessoal. Não pedi, ordenei! Que parassem com aquela desonra! Já estava demais. Que o deixassem em paz. Terminei a defesa, dizendo que ele também merecia respeito, mesmo sem o nosso crédito. Recebi uma grande vaia:

– Deixa disso Chico. Vem aqui, vamos brincar, vamos curtir aqui com o Zé. Ele é gente fina, entende de futebol, de mulher e não leva nada a sério…

Ele olhou para mim e sorriu. Achei que ele havia gostado da minha interferência, o que de fato aconteceu. Então pediu que eu sentasse perto dele, porque eu era muito bacana e ele queria me dar um presente.  Ego e vaidade devidamente acariciados, afastei o copo de cachaça e me sentei ao seu lado. Então ele começou a subir e descer os braços, fazendo movimentos em forma de x pelos meus ombros e minhas pernas, estralando os dedos no final de cada cruzamento. Achei, de início, engraçado…

– Gosto muito de você, você é muito legal, muito bacana e eu trouxe um presente para você…

Ele disse isso e trinta segundos depois eu comecei a me sentir mal. Parecia que eu ia explodir. Senti como se tivesse um balão dentro de mim e que fosse enchendo a cada segundo. Tontura e uma sensação de ausência, desmaio e náusea me fizeram cambalear ainda sentado. Meu coração começou a bater descompassada e estranhamente.  Levantei. Deixei o grupo e caminhei alguns metros no sentido de nossa mesa, mas sem conseguir chegar lá; parecia que eu estava dominado não sei por quem ou o quê; sentia-me muito estranho. Minha garganta travou; meus olhos e minha cabeça doíam. A falta de ar chegou e me apavorou. Sem que ninguém da minha turma percebesse, eu passava muito mal.

Ouvi a voz de Nadja distante, muito longe a me perguntar o que estava acontecendo. Encostei-me a uma mesa mais próxima, na esperança de não cair. Tentei gritar. Esforço vão. O pessoal, nem dava conta de mim, entretidos que estavam com o rapaz do outro lado, ainda incorporado. Eu, metros à frente, me segurava para não tombar, lutando como um guerreiro abatido para não se deixar vencer.

Quando pensei não mais aguentar, comecei a bater palmas de uma forma muito estranha. Sem que pudesse controlar, batia palmas. Era algo que não era eu que comandava como se alguém tivesse chegado de longe e me tomado. Tinha pouquíssima ou quase nenhuma consciência do que fazia e a minha capacidade de reação era nula. Somente bater palmas era o que eu, distantemente, sentia fazer naquele momento. Calculo que fiquei assim por alguns minutos. Em dado momento também sem que controlasse, comecei a falar:

– Salve Deus, graças a Deus, salve Deus, salve Deus…

– Salve Deus, graças a Deus…

Eu continuava em minha manifestação, sem perceber o que me diziam e o que acontecia em meu redor e só escrevo isso porque me contaram. 

Enquanto batia palma e falava aquilo que me era tão estranho, totalmente desconhecido, o pessoal ainda brigava comigo, taxando-me de imitador e coisas similares. O mal-estar foi diminuindo, diminuindo, e de repente o efeito e o cheiro do álcool passaram. Devagar, abri os olhos e novamente me vi ali, naquele bar, com meus amigos, encostado a uma mesa; voltei a ter a noção de onde estava, da sala, das mesas, do que fazia, do meu corpo, do ambiente, enfim, estava novamente no meu estado normal. 

– Que houve Chico? Perguntou Nadja. 

– Não sei lhe explicar. Não me pergunte eu não sei lhe dizer.

O tal sujeito incorporado, as mulheres e os meus companheiros de mesa é que não gostaram muito porque quando eu voltei a mim, a festa deles já tinha acabado há muito tempo. Foram dizer que eu era, além de sem-personalidade, estraga-prazeres…Saí dali, mais assustado que envergonhado, certo de que tinha recebido uma daquelas almas de macumba, mas sem dar importância e sem saber o que de fato tinha ocorrido; aquilo ficou na minha mente por muitas semanas, mas depois tudo voltou ao normal, porque eu já estava de novo na mesma sintonia de antes: com os amigos nas brincadeiras, bebendo, sem saber, sem ter a menor ideia do que tinha acontecido naquele dia.

Esse fato aconteceu em meados de dezembro de 1976.

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